"Mas porque é a infância de uma pessoa é assim tão importante?"; "Não entendo, nós temos tantas relações ao longo da nossa vida que é natural irmos recebendo de cada uma delas aquilo que precisamos... é uma questão de encontrarmos a pessoa certa".
Ora bem, neste argumento há sem dúvida o reconhecimento da realidade de uma necessidade - "aquilo que precisamos". Acrescentaríamos até, "aquilo que precisamos das e nas relações, por parte de com quem nos relacionamos". Isto, claro, implica já o reconhecimento de uma certa dependência em relação aos demais e algo que eles nos podem oferecer de que nós necessitamos, e logo, o reconhecimento de que as relações são importantes para nós, para o nosso equilíbrio emocional e psicológico.
A grande verdade do argumento introdutório deste artigo está ligada à importância para a nossa saúde emocional de vivermos várias (e diferentes) relações ao longo da vida. A diversidade nas relações é estimulante, torna mais abrangente a nossa forma de ver e de pensar a vida, abre-nos as portas a novas realidades e experiências, e eventualmente traz-nos novas soluções para problemas antigos (já para não falar de que também nós nos podemos tornar disponíveis para podermos dar tudo isto ao outro).
No entanto, o argumento entra em falha pela desconsideração de 3 grandes realidades psicológicas humanas:
1) A natureza dos vínculos humanos é diversa, ou seja, existem vários tipos de vínculos bem distintos - vínculos parentais, vínculos fraternos, vínculos de amizade, vínculos conjugais, etc. - nos quais se jogam necessidades e vontades humanas diferentes. Por tal, diferentes tipos de vínculos têm impactos diferentes na nossa psicologia ou no nosso desenvolvimento psicológico. Isto implica que determinadas necessidades psicológicas e afetivas, bem como determinados contextos de relação, sejam aspetos que pertencem e caracterizam os vários vínculos que formamos com os demais. Dito de outra forma, regra geral não saímos "para os copos" com as nossas mães, não esperamos que os nossos amigos nos paguem os estudos superiores e não partilhamos com o nosso vizinho a intimidade que partilhamos por exemplo, com o nosso médico de família, ou psicólogo. As exceções ou sobreposições de vínculos existem, mas devem ser consideradas e ponderadas caso a caso.
2) Os primeiros vínculos, os vínculos com os nossos cuidadores durante o período da infância - sobretudo durante o 1º ano de vida -, são os mais importantes e críticos para o desenvolvimento da nossa personalidade. Logo no início de vida eles são o meio que vai mediar as necessidades primárias humanas, geneticamente determinadas, com que todos nascemos à priori, e que estão relacionadas com o desenvolvimento psicofisiológico dos primeiros tempos de vida. Falamos de um período em que a nossa psique (enquanto bebés) é ainda extremamente frágil e vulnerável, incapaz de se proteger adequadamente contra a angústia e a frustração. O bebé recém-nascido traumatiza facilmente com a exposição precoce contínua ou prolongada à privação e à angústia resultante. O bebé não tem a mesma capacidade de fazer face à angústia que um adulto têm, nem mesmo a capacidade que tem uma criança já com acesso ao pensamento e à linguagem, capaz de articular e expressar por palavras as suas emoções, por exemplo. Estas experiências de exposição à angústia prolongada ou contínua durante os primeiros tempos de vida relacionam-se frequentemente com aquelas que são as psicopatologias e perturbações de personalidade consideradas as mais graves nos períodos posteriores de vida - por exemplo as psicoses, as perturbações psicossomáticas, as perturbações borderline e narcísicas de personalidade.
3) Quando as primeiras relações não satisfazem adequadamente certas necessidades fundamentais da criança, então a dependência - ou o "amor infantil" -, própria deste período de vida, permanece muitas vezes instalada na personalidade enquanto forma central ou preponderante de amar e de funcionar mais tarde na vida adulta e na relação amorosa/íntima (independentemente da pessoa com quem se estabelece tal relação). A não resolução da dependência infantil implica a limitação do acesso ao amor maduro, um amor não exigente, paciente, que investe o outro sobretudo por quem o outro é - amor oblativo - e não por aquilo que o outro nos dá ou pelas vantagens que a associação ou proximidade com ele nos pode trazer - amor narcísico. Neste último caso, as relações amorosas na vida adulta tendem a ser procuradas (ainda que inconscientemente) no sentido de, por exemplo, evitar o contacto com a dor da carência precoce instalada no âmago da personalidade, são necessárias para a manutenção da autoestima, para tentar colmatar um "vazio", ou mesmo usadas como antidepressoras, no sentido de "tapar" a dor emocional e/ou a confusão mental. O vinculo amoroso (re)ativa tudo o que está ligado à própria capacidade de vinculação afetiva, ou seja, tudo o que foi ou não vivido nos vínculos primários de infância. Problemas de "vazio", de faltas afetivas, de contenção, de compreensão, de validação e outros problemas psicológicos e relacionais instalados precocemente na própria natureza e dinâmica vinculativa infantil emergem aqui. São também reativadas e/ou reforçadas muitas vezes defesas psicológicas contra essa faltas e problemas, podendo tal gerar sérios problemas de estabilidade emocional e relacional.
A relação amorosa e o vínculo de amor maduro transformam-se no veículo de retoma dos vínculos de infância, e na reativar do vínculo de dependência - o amor dependente. É como que uma regressão (parcial) a uma etapa anterior do desenvolvimento psicoafetivo que não ficou bem resolvida. Acaba por surgir um conflito e muita confusão à mistura: por um lado há uma relação amorosa adulta e um outro que é companheiro adulto ou companheira adulta, e, por outro lado, estabelece-se uma relação de dependência por ativação do vínculo de dependência que está ainda para ser resolvido. Tal não é possível porque as relações amorosas ou as amizades não são relações estruturantes da personalidade, tal como o são (ou deveriam ser) as relações parentais (ou a figura do psicoterapeuta e a relação psicoterapêutica).
Muitas vezes estas sobreposições/confusões de vínculos maduros e de dependência não são totalmente conscientes. Formam-se expetativas desajustadas sobre as relações amorosas e sobre o papel do(a) companheiro(a). Quando essas expetativas pessoais - conscientes ou não - não são satisfeitas tal gera muitas vezes uma frustração intensa, dificilmente suportável, com expressões emocionais e comportamentais de fúria e irritação dirigidas ao companheiro ou companheira. Em certos casos estas reações emocionais e comportamentais fazem-se acompanhar de estratégias de controlo, culpabilização, manipulação, etc. da outra pessoa. A finalidade é que esta outra pessoa corresponda (ou regresse) às expetativas - conscientes ou não - que recaem sobre ela. Aqui surge muitas vezes um fenómeno de "cadaverização" do outro. Ou seja, o outro fica limitado na sua liberdade de ser quem é, tornando-se como que numa extensão narcísica do primeiro, alguém que deve acima de tudo desempenhar um papel e uma função para essa primeira pessoa. Se não corresponde a esse papel, então é (erradamente) transformado e percebido como a fonte de todo sofrimento pessoal.
Enquanto seres humanos, temos uma tendência natural e inconsciente de selecionar parceiros que de alguma forma dão expressão aos nossos problemas não resolvidos. Isto significa que muitas vezes o outro também carrega o mesmo problema ou problemas, ainda que o que possa estar mais em evidência num primeiro momento seja a defesa contra o problema (que facilmente se pode confundir com a sua resolução). Assim, geram-se rapidamente dinâmicas relacionais patológicas, bastante difíceis de desmontar e quebrar, pois as faltas emocionais e de autoestima, as zangas com origem nas relações precoces, e as internalizações patológicas de parte a parte formam um conluio no seio do casal que interprende ambos em algo que tendencialmente é mais forte que o amor - a união na loucura. Mais forte que o amor, pois clinicamente se verifica que o amor (maduro) é livre, enquanto que a dependência e a patologia acorrentam as pessoas umas às outras.
Ora bem, neste argumento há sem dúvida o reconhecimento da realidade de uma necessidade - "aquilo que precisamos". Acrescentaríamos até, "aquilo que precisamos das e nas relações, por parte de com quem nos relacionamos". Isto, claro, implica já o reconhecimento de uma certa dependência em relação aos demais e algo que eles nos podem oferecer de que nós necessitamos, e logo, o reconhecimento de que as relações são importantes para nós, para o nosso equilíbrio emocional e psicológico.
A grande verdade do argumento introdutório deste artigo está ligada à importância para a nossa saúde emocional de vivermos várias (e diferentes) relações ao longo da vida. A diversidade nas relações é estimulante, torna mais abrangente a nossa forma de ver e de pensar a vida, abre-nos as portas a novas realidades e experiências, e eventualmente traz-nos novas soluções para problemas antigos (já para não falar de que também nós nos podemos tornar disponíveis para podermos dar tudo isto ao outro).
No entanto, o argumento entra em falha pela desconsideração de 3 grandes realidades psicológicas humanas:
1) A natureza dos vínculos humanos é diversa, ou seja, existem vários tipos de vínculos bem distintos - vínculos parentais, vínculos fraternos, vínculos de amizade, vínculos conjugais, etc. - nos quais se jogam necessidades e vontades humanas diferentes. Por tal, diferentes tipos de vínculos têm impactos diferentes na nossa psicologia ou no nosso desenvolvimento psicológico. Isto implica que determinadas necessidades psicológicas e afetivas, bem como determinados contextos de relação, sejam aspetos que pertencem e caracterizam os vários vínculos que formamos com os demais. Dito de outra forma, regra geral não saímos "para os copos" com as nossas mães, não esperamos que os nossos amigos nos paguem os estudos superiores e não partilhamos com o nosso vizinho a intimidade que partilhamos por exemplo, com o nosso médico de família, ou psicólogo. As exceções ou sobreposições de vínculos existem, mas devem ser consideradas e ponderadas caso a caso.
2) Os primeiros vínculos, os vínculos com os nossos cuidadores durante o período da infância - sobretudo durante o 1º ano de vida -, são os mais importantes e críticos para o desenvolvimento da nossa personalidade. Logo no início de vida eles são o meio que vai mediar as necessidades primárias humanas, geneticamente determinadas, com que todos nascemos à priori, e que estão relacionadas com o desenvolvimento psicofisiológico dos primeiros tempos de vida. Falamos de um período em que a nossa psique (enquanto bebés) é ainda extremamente frágil e vulnerável, incapaz de se proteger adequadamente contra a angústia e a frustração. O bebé recém-nascido traumatiza facilmente com a exposição precoce contínua ou prolongada à privação e à angústia resultante. O bebé não tem a mesma capacidade de fazer face à angústia que um adulto têm, nem mesmo a capacidade que tem uma criança já com acesso ao pensamento e à linguagem, capaz de articular e expressar por palavras as suas emoções, por exemplo. Estas experiências de exposição à angústia prolongada ou contínua durante os primeiros tempos de vida relacionam-se frequentemente com aquelas que são as psicopatologias e perturbações de personalidade consideradas as mais graves nos períodos posteriores de vida - por exemplo as psicoses, as perturbações psicossomáticas, as perturbações borderline e narcísicas de personalidade.
3) Quando as primeiras relações não satisfazem adequadamente certas necessidades fundamentais da criança, então a dependência - ou o "amor infantil" -, própria deste período de vida, permanece muitas vezes instalada na personalidade enquanto forma central ou preponderante de amar e de funcionar mais tarde na vida adulta e na relação amorosa/íntima (independentemente da pessoa com quem se estabelece tal relação). A não resolução da dependência infantil implica a limitação do acesso ao amor maduro, um amor não exigente, paciente, que investe o outro sobretudo por quem o outro é - amor oblativo - e não por aquilo que o outro nos dá ou pelas vantagens que a associação ou proximidade com ele nos pode trazer - amor narcísico. Neste último caso, as relações amorosas na vida adulta tendem a ser procuradas (ainda que inconscientemente) no sentido de, por exemplo, evitar o contacto com a dor da carência precoce instalada no âmago da personalidade, são necessárias para a manutenção da autoestima, para tentar colmatar um "vazio", ou mesmo usadas como antidepressoras, no sentido de "tapar" a dor emocional e/ou a confusão mental. O vinculo amoroso (re)ativa tudo o que está ligado à própria capacidade de vinculação afetiva, ou seja, tudo o que foi ou não vivido nos vínculos primários de infância. Problemas de "vazio", de faltas afetivas, de contenção, de compreensão, de validação e outros problemas psicológicos e relacionais instalados precocemente na própria natureza e dinâmica vinculativa infantil emergem aqui. São também reativadas e/ou reforçadas muitas vezes defesas psicológicas contra essa faltas e problemas, podendo tal gerar sérios problemas de estabilidade emocional e relacional.
A relação amorosa e o vínculo de amor maduro transformam-se no veículo de retoma dos vínculos de infância, e na reativar do vínculo de dependência - o amor dependente. É como que uma regressão (parcial) a uma etapa anterior do desenvolvimento psicoafetivo que não ficou bem resolvida. Acaba por surgir um conflito e muita confusão à mistura: por um lado há uma relação amorosa adulta e um outro que é companheiro adulto ou companheira adulta, e, por outro lado, estabelece-se uma relação de dependência por ativação do vínculo de dependência que está ainda para ser resolvido. Tal não é possível porque as relações amorosas ou as amizades não são relações estruturantes da personalidade, tal como o são (ou deveriam ser) as relações parentais (ou a figura do psicoterapeuta e a relação psicoterapêutica).
Muitas vezes estas sobreposições/confusões de vínculos maduros e de dependência não são totalmente conscientes. Formam-se expetativas desajustadas sobre as relações amorosas e sobre o papel do(a) companheiro(a). Quando essas expetativas pessoais - conscientes ou não - não são satisfeitas tal gera muitas vezes uma frustração intensa, dificilmente suportável, com expressões emocionais e comportamentais de fúria e irritação dirigidas ao companheiro ou companheira. Em certos casos estas reações emocionais e comportamentais fazem-se acompanhar de estratégias de controlo, culpabilização, manipulação, etc. da outra pessoa. A finalidade é que esta outra pessoa corresponda (ou regresse) às expetativas - conscientes ou não - que recaem sobre ela. Aqui surge muitas vezes um fenómeno de "cadaverização" do outro. Ou seja, o outro fica limitado na sua liberdade de ser quem é, tornando-se como que numa extensão narcísica do primeiro, alguém que deve acima de tudo desempenhar um papel e uma função para essa primeira pessoa. Se não corresponde a esse papel, então é (erradamente) transformado e percebido como a fonte de todo sofrimento pessoal.
Enquanto seres humanos, temos uma tendência natural e inconsciente de selecionar parceiros que de alguma forma dão expressão aos nossos problemas não resolvidos. Isto significa que muitas vezes o outro também carrega o mesmo problema ou problemas, ainda que o que possa estar mais em evidência num primeiro momento seja a defesa contra o problema (que facilmente se pode confundir com a sua resolução). Assim, geram-se rapidamente dinâmicas relacionais patológicas, bastante difíceis de desmontar e quebrar, pois as faltas emocionais e de autoestima, as zangas com origem nas relações precoces, e as internalizações patológicas de parte a parte formam um conluio no seio do casal que interprende ambos em algo que tendencialmente é mais forte que o amor - a união na loucura. Mais forte que o amor, pois clinicamente se verifica que o amor (maduro) é livre, enquanto que a dependência e a patologia acorrentam as pessoas umas às outras.