Começamos com este vídeo muito interessante. Enquanto alguém que pratica e conhece a filosofia budista e psicanálise, acho que ambas as disciplinas se debruçam bastante sobre este tema. Gosto particularmente de como a psicanálise organiza estas ideias.
"Amor (love)" e "Apego(attachment)" para a psicanálise não são contraditórios de facto. Outro termo para "attachment é "vínculo". No principio um bebé é amado (o banho de sedução mútua que o bebé interioriza pelo olhar de amor e fascínio da mãe, por exemplo). Depois passa a amar-se. Finalmente, ama. No fundo falamos de narcisismo, da evolução do narcisismo, do amor narcísico ou interesseiro - amar quem nos dá o que precisamos - para o amor oblativo, generoso.
Freud falava deste mistério em como nas relações amorosas investir num outro que não o "Eu" conduziria a um empobrecimento do Eu. A nossa energia deixava em grande medida de estar em nós e passava para esse outro. Depois constatou que para não nos esvaziarmos, o investimento amoroso no outro tem de ser recíproco. É o amor do outro que nos alimenta numa relação amorosa.
Contudo, o amor maduro implica sempre um investimento natural(!) em nós mesmos (amor narcísico-normativo) e no outro em simultâneo. Por tal um amor maduro não tende a ser um amor particularmente dependente ou exigente - é um amor generoso e paciente -, porque não coloca no outro o mesmo grau de responsabilidade/exigência que por exemplo uma criança pequena coloca ou espera de um cuidador. A tónica está em perceber se "criança" ou o "bebé" interno estão bem cuidados. Ou seja, se se verifica um desenvolvimento adequado do narcisismo ligado à qualidade da relação de cuidados dos primeiros anos de vida (os anos formativos da personalidade). Neste caso ao companheiro amoroso é tendencialmente delegado apenas o papel de companheiro amoroso. Porém se esta "criança" ou "bebé" interno estão magoados, abandonados, revoltados, carentes, não vistos, vazios, desconfiados, culpabilizados, inferiorizados, humilhados, etc., então o papel atribuído ao companheiro amoroso poderá ser algo para além (ou aquém) do compromisso amoroso. Para um amor maduro precisamos de uma robustez narcisica saudável (um amor próprio ou auto-consideração maduros e auto-reguláveis, entre outros aspetos).
Nas relações desequilibradas em que um dá muito e o outro dá muito pouco temos uma "economia depressígena" - aquele que recebe pouco tenderá ao esvaziamento, o que gera o risco de depressão (ou do reavivar uma eventual depressão latente). São situações em que muitas vezes quem tanto se esforça por corresponder ás altas exigências do companheiro e tão pouco recebe em troca, carrega consigo uma autoexigência ou culpabilidade (das quais o outro companheiro se aproveita) em que a própria pessoa sente que o motivo pelo qual não se sente feliz e satisfeita é porque não dá o suficiente ou o seu melhor, ainda que muitas vezes seja patente um história em que os esforços na relação claramente suplantam os do companheiro.
Os vínculos amorosos saudáveis implicam entrega - quando nos entregarmos também estamos a abrir-nos a receber do outro. Não vivemos ou podemos sobreviver isolados dos afetos dos outros porque sobrevivemos a partir deles e a falta ou desencontro afetivo crónico marca a psicopatologia ou colocam a pessoa em risco psicológico. Aqui sim, quando o narcisismo é deficitário, quando o bebé e a criança não recebem na medida daquilo que necessitam, o amor narcísico-interesseiro pode ser a única modalidade de amor que fica acessível na idade adulta. Permanece enquanto expressão de problemas e desencontros oriundos de uma época de vida em que se precisou muito de algo mais, de um cuidar mais sintónico e mais empático, mas que nunca chegou. Ou foi pouco, por um ou vários motivos. Aqui o "attachment" transforma-se em "grasp" (apego). É dependência porque na verdade por detrás dos motivos conscientes de escolha do companheiro está a procura de algo que outrora se precisou mas não se encontrou. Clinicamente constatamos amiúde como vidas inteiras se desperdiçam nesta procura incessante daquela pessoa que finalmente irá suprir a falta, a dor, ou que vá finalmente "encaixar", sem que muitas vezes a própria pessoa saiba exatamente no que é que verdadeiramente a outra pessoa deve encaixar e de que forma.
Faltas, falhas, carências sérias, traumas, desencontros, desajustes e inadequações entre necessidades e capacidade cuidadora adequada e sintónica desde o nascimento, determinam frequentemente problemas nas relações adultas. São aspetos do desenvolvimento psicológico precoce que não podem na verdade ser reparados via das relações amorosas (ainda que tendêncialmente procuremos muitas vezes fazê-lo). Um dos principais motivos deve-se ao facto de que a dimensão do trajeto pessoal ligada ao desenvolvimento psicológico precoce está para além (ou aquém) dos vinculos românticos, ou seja, pertence ao âmbito das relações parentais precoces - relações estruturalmente diferentes das relações amorosas, de expetativas, necessidades e permanências diferentes nas nossas vidas. Há certas carências que podem ser atenuadas no campo amoroso, porém quando são sérias e sobretudo aspetos ligados ao desenvolvimento da personalidade que perduram durante anos e aquando das várias relações, então a psicoterapia é de facto indispensável.
Estas faltas são dos maiores contributos para o medo da perda. Amamos interesseiramente porque precisamos de algo no outro que o torna ideal, idealizado ou idealizável. Amamos para sermos amados ou admirados, ou para estarmos associados àqueles ligados à admiração e ao prestígio. Amamos para sermos amados ou para não sermos abandonados. Por vezes amamos meramente enquanto reforço da nossa identidade (o outro tem características que nos conferem um sentido de identidade reforçada quando nos associamos a ele e ao seu estilo de vida). Procuramos encher-nos de coisas boas e sentimentos bons, tornando muitas vezes os outros nossos apêndices e vice-versa. Muitas vezes o orgulho ou a vergonha no companheiro atestam bem esta realidade. O outro serve (ainda que por vezes não exclusivamente, e apenas em parte) uma função de restaurar e repor algum aspeto deficitário da nossa autoestima, ou colmatar e proteger-nos contra angústias fortíssimas ou de sensações de ameaça interna por parte de algo muito mau ou destrutivo.
Por vezes assim que começamos a amar (ou pouco tempo depois) também começamos a sentir insegurança. Começamos a desvalorizar a outra pessoa, a atacar dentro de nós a perceção da importância que essa outra pessoa tem para nós, e mesmo a controla-la (a procurar sentir-nos seguros) ou a procurar "triunfar" sobre ela (por exemplo adotando comportamentos cuja mensagem é algo como um "como vês estou muito bem sem ti e não preciso de ti para nada"). São muitas vezes movimentos de negação interna da importância daquela pessoa para nós e daquilo de bom e importante que ela em potencial ou na realidade poderá ter para nos dar e de que precisamos. A cada "desencontro" ou frustração com o companheiro vamo-nos convencendo mais e mais de que estamos melhor sem aquela pessoa, de que talvez não seja a pessoa certa. Apontamos todos os defeitos numa folha de papel... Muitas vezes estas atitudes são o resultado de fortes mecanismos de defesa (omnipotência, negação da realidade psíquica, controlo, desvalorização primitiva, triunfo...) a operar por detrás de todos estas atitudes de relativizar, diminuir ou anular a importância da outra pessoa para nós. Defesas destinadas a negar a dor e o medo da perda, bem como a insuportabilidade da culpabilidade sobre danos infligidos. Estas defesas psíquicas tendem a ser tanto mais fortes e acentudadas quanto o medo da perda e a ameaça das angústias avassaladoras por detrás, ainda que a própria pessoa não tenha consciência destas angústias pois elas estão "tapadas" por estes poderosos (mas primitivos) mecanismos de defesa - sempre em eminência de colapso.
Neste terreno do amor narcísico é também onde surgem as idealizações mais patológicas. O amor implica uma certa idealização inicial. No amor narcísico a idealização é forte e não tolera nada bem a realidade do outro - alguém com uma identidade própria e diferente da nossa -, que muitas vezes não pode ser amado tal como é mas apenas ou sobretudo pela função que desempenha ou pelas expetativas e exigências que lhe são incumbidas. Tomemos o exemplo de mães e pais que desaprovam dos filhos quando estes não correspondem às suas expetativas, ou se desiludem constantemente com eles. Ou mesmo pais e mães que têm dificuldade em se interessar genuinamente nas descobertas dos seus filhos, nas dúvidas deles sobre o mundo que os rodeia e sobre eles mesmos, nas suas ideosincrassias. Que não conseguem ajuda-los a viver ligados e centrados neles mesmos, que por consequência fomentam um crescer centrado no exterior, nas expetativas e exigências dos outros (sendo os pais os primeiros e mais importantes representantes desses "outros" exteriores). Falamos de crianças que muitas vezes acabam por não poder ser elas mesmas - confiantes que são aceites, validadas e amadas tal como são, sem exigência ou expetativa para serem algo mais ou diferente. Crianças que por tal têm dificuldade em encontrar um ambiente de apoio para poderem encontrar e construir o seu próprio caminho no mundo, o seu "Eu verdadeiro".
A ligação com o Eu verdadeiro é a única via para tomar decisões de vida em consonância com a verdade interna que dá sentido à vida. Em contraste está o excesso de orientação de vida em função da expetativa exterior. Esta expetativa exterior ao longo do desenvolvimento torna-se interna, por internalizações inerente aos fenómenos do desenvolvimento e pelo hábito de foco nas expetativas exteriores ao longo da vida desde os anos formativos da personalidade. Também é frequente uma criança estar habituada desde muito cedo a focar-se nas preocupações da família, como se fosse adulta precocemente. Pode até receber comentários da família de como era um bebé bem comportado e parecia ser uma criança muito crescida logo desde muito cedo. É frequente que estas crianças enquanto bebés tenham vivido dificuldades ao nível da relação de cuidados primários com a mãe. Se nos primeiros meses de vida a mãe está sempre muito ansiosa ou se irrita amiúde quando cuida do bebé, ou é muito rígida no cuidar ao ponto de não conseguir estar verdadeiramente em sintonia com o bebé, atrasar-se muito ou antecipar-se aos protestos do bebé (ou outras situações idênticas), o bebé pode facilmente viver este estado da mãe enquanto ameaça à própria integridade de si mesmo (por motivos complexos ligados ao desenvolvimento da psique do bebé). Assim, o bebé pode desistir de protestar e anular (desintegrar) a parte de si que vive e experiencia a necessidade. É o bebé que passa a adaptar-se à mãe, a fazer como que psicoterapia à mãe ou a permitir que a mãe satisfaça as suas necessidades de cuidar através dele, ou que a faça sentir uma boa mãe, por exemplo. Há uma inversão de papeis logo desde os primeiros meses de vida que vai muitas vezes conduzir à formação de um Eu menos verdadeiro, que se orienta para os outros, para o desempenho de papéis ou para as expetativas e papeis exteriores (dos pais, sociais, e depois internalizados a partir destes) - a boa menina, a menina educada, a boa estudante, a amiga da mãe e do pai, a amiga do irmão, etc..
São por vezes jovens e adultos muito bem sucedidos mas que podem procrastinar e/ou deixam carreiras promissoras de lado, porque em última análise estes cursos de vida não estão em linha com quem verdadeiramente são ou com o que querem. Muitas vezes estes jovens e adultos não sabem o que querem, pois de tantas expetativas e exigências externas (por vezes para não desiludir os pais), estão tão habituados a monitorizar e seguir a expetativa que nem têm a experiência de se ligar a eles mesmos e descobrir quem são e o que querem. Outras vezes conseguem-no, porém o caminho logo logo fica tingido da tão familiar expetativa (interna sobretudo) e tal retira continuamente o prazer e a possibilidade de "ser" no fazer, desligando a pessoa do seu Eu e centrando-a novamente na expetativa (agora interna). Outras vezes a ligação com o Eu verdadeiro é um vazio insuportável com o qual não se consegue lidar ou o não se sabe o que com ele fazer. Vazio que denuncía a pequena criança que ainda está por descobrir quem é... Que lá no fundo procura alguém que lhe dê condições para ela própria se poder centrar sobre si mesma, construir o próprio caminho e descobrir a sua luz interna, aquela que surge do vazio e dá sentido e orientação à vida. É frequente que nem se tenha ideia do quanto se procura uma relação que permita fazer este caminho interno, pois a experiência da exigência (seja qual for ou quais tenham sido as formas que ela tenha vindo a assumir ao longo da vida) suplantou e substituiu a procura ou o desejo de uma relação com alguém que facilite e apoie a ligação ao Eu interior, o verdadeiro Eu. Procurar e encontrar alguém cuja atitude esteja longe de ser uma de impor, exigir, se desiludir, gerar expetativas, dar conselhos ou orientações, tudo interferências à possibilidade de deixar a criança (e o adulto) ligar-se a si mesma e se descobrir genuinamente - de se encontrar a ela mesma e descobrir o seu sentido e propósito no mundo.
De pais para filhos há sempre um amor narcísico à mistura ainda que possa predominar o amor oblativo, pois na prática os filhos são mesmo extensão dos pais, partilham o mesmo ADN! O que importa é preservar uma capacidade de diferenciação de desejos dos pais e da individualidade da criança, respeitar e dignificar a sua autonomia, identidade, escolhas e desejos, sem desilusões, culpas ou críticas.
Um amor narcísico ou imaturo é um amor que dificilmente tolera bem a altereidade, a diferença de individualidades (de feitios, de pensamentos diferentes, etc.). É um amor exigente porque na verdade procura uma adaptação ideal com a outra pessoa, ou melhor, que o "outro" se adapte idealmente ao "Eu", Por vezes a única modalidade de estar numa relação íntima é a adaptação resignada ao outro e às suas idiossincrasias, ou então a exigência de que o outro se adapte ou se modifique consoante a vontade/necessidade do "Eu". Por tal estamos no campo da indiferenciação psicológica - uma fase precoce do desenvolvimento do bebé que implica um estado mental de confusão Eu/Outro, entre o que existe dentro do "Eu" (desejos, expetativas, angústias, fantasias), e o que existe fora do "Eu", nomeadamente a individualidade externa, real, da outra pessoa. Estas dimensões estão geralmente confundidas nas problemas narcísicos de personalidade, por exemplo.
O amor narcísico é um amor que muitas vezes esgota o parceiro mediante a insatisfação e exigência que o caracteriza, frequentemente bem mascaradas por "argumentos" inteligentes destinados ao alívio da culpa intolerável de tanto se exigir e tão pouco em troca se dar. No final, o parceiro, drenado e zangado, acaba desvalorizado quando não é mais o provedor que se precisa. É então amiúde substituido por um outro provedor (de proteção, apoio, dinheiro, sonhos, viagens, estatuto, oportunidades, etc.), alguém que finalmente irá trazer a tão idealizada plenitude. Por sua vez, este movimento interno que tão rápidamente faz do outro admirável como indesejável, trata-se do mecanismo que irá reinstalar e repetir toda o ciclo de instabilidade e insatisfação, o ciclo de idealização/desvalorização primitivas (porque se tratam de processos internos que impedem ver o outro de forma completa, a partir de um vinculo emocional simultâneo com os lados admirados e os lados menos agradáveis da outra pessoa, sem que um ou outro destes lados eclipse o outro).
O amor maduro é um amor que não vêm necessáriamente a partir do "Eu" ou do interesse do "Eu" em se investir ou se estruturar a partir do outro. É um amor que é dado ou dirigido ao outro a partir daquilo que nos sobra (de afeto e de uma estruturação já préviamente completa do "Eu"). É um amor dirigido ao outro por quem este é e não por quem precisamos que ele seja para nós (por vezes momento a momento). Amar oblativamente sem depender ou exigir exagerada ou desadequadamente inaugura relações sãs, contudo tais relações são apenas possíveis se em troca recebermos o mesmo tipo de amor. Parece contraditório pois há uma expetativa de retorno, que poderíamos apelidar de narcísica, ainda que, mais uma vez, nós de facto vivemos de afetos e sem eles afundamos na depressão ou pior. O amor sem exigir - "amo-te e por tal quero que sejas feliz"- subentende entrega genuína e encontro com um outro que também esteja disposto a amar sem exigir, sem procurar modificar o companheiro. Quando recebemos amor sentimos gratidão e tal dá azo à generosidade, ou seja, à vontade de dar em troca. É uma espiral de amor que se gera, sem exigência, baseada num bom desenvolvimento do narcisismo de parte a parte e no crescente desejo de dar que advém da experiência do receber.
"Amor (love)" e "Apego(attachment)" para a psicanálise não são contraditórios de facto. Outro termo para "attachment é "vínculo". No principio um bebé é amado (o banho de sedução mútua que o bebé interioriza pelo olhar de amor e fascínio da mãe, por exemplo). Depois passa a amar-se. Finalmente, ama. No fundo falamos de narcisismo, da evolução do narcisismo, do amor narcísico ou interesseiro - amar quem nos dá o que precisamos - para o amor oblativo, generoso.
Freud falava deste mistério em como nas relações amorosas investir num outro que não o "Eu" conduziria a um empobrecimento do Eu. A nossa energia deixava em grande medida de estar em nós e passava para esse outro. Depois constatou que para não nos esvaziarmos, o investimento amoroso no outro tem de ser recíproco. É o amor do outro que nos alimenta numa relação amorosa.
Contudo, o amor maduro implica sempre um investimento natural(!) em nós mesmos (amor narcísico-normativo) e no outro em simultâneo. Por tal um amor maduro não tende a ser um amor particularmente dependente ou exigente - é um amor generoso e paciente -, porque não coloca no outro o mesmo grau de responsabilidade/exigência que por exemplo uma criança pequena coloca ou espera de um cuidador. A tónica está em perceber se "criança" ou o "bebé" interno estão bem cuidados. Ou seja, se se verifica um desenvolvimento adequado do narcisismo ligado à qualidade da relação de cuidados dos primeiros anos de vida (os anos formativos da personalidade). Neste caso ao companheiro amoroso é tendencialmente delegado apenas o papel de companheiro amoroso. Porém se esta "criança" ou "bebé" interno estão magoados, abandonados, revoltados, carentes, não vistos, vazios, desconfiados, culpabilizados, inferiorizados, humilhados, etc., então o papel atribuído ao companheiro amoroso poderá ser algo para além (ou aquém) do compromisso amoroso. Para um amor maduro precisamos de uma robustez narcisica saudável (um amor próprio ou auto-consideração maduros e auto-reguláveis, entre outros aspetos).
Nas relações desequilibradas em que um dá muito e o outro dá muito pouco temos uma "economia depressígena" - aquele que recebe pouco tenderá ao esvaziamento, o que gera o risco de depressão (ou do reavivar uma eventual depressão latente). São situações em que muitas vezes quem tanto se esforça por corresponder ás altas exigências do companheiro e tão pouco recebe em troca, carrega consigo uma autoexigência ou culpabilidade (das quais o outro companheiro se aproveita) em que a própria pessoa sente que o motivo pelo qual não se sente feliz e satisfeita é porque não dá o suficiente ou o seu melhor, ainda que muitas vezes seja patente um história em que os esforços na relação claramente suplantam os do companheiro.
Os vínculos amorosos saudáveis implicam entrega - quando nos entregarmos também estamos a abrir-nos a receber do outro. Não vivemos ou podemos sobreviver isolados dos afetos dos outros porque sobrevivemos a partir deles e a falta ou desencontro afetivo crónico marca a psicopatologia ou colocam a pessoa em risco psicológico. Aqui sim, quando o narcisismo é deficitário, quando o bebé e a criança não recebem na medida daquilo que necessitam, o amor narcísico-interesseiro pode ser a única modalidade de amor que fica acessível na idade adulta. Permanece enquanto expressão de problemas e desencontros oriundos de uma época de vida em que se precisou muito de algo mais, de um cuidar mais sintónico e mais empático, mas que nunca chegou. Ou foi pouco, por um ou vários motivos. Aqui o "attachment" transforma-se em "grasp" (apego). É dependência porque na verdade por detrás dos motivos conscientes de escolha do companheiro está a procura de algo que outrora se precisou mas não se encontrou. Clinicamente constatamos amiúde como vidas inteiras se desperdiçam nesta procura incessante daquela pessoa que finalmente irá suprir a falta, a dor, ou que vá finalmente "encaixar", sem que muitas vezes a própria pessoa saiba exatamente no que é que verdadeiramente a outra pessoa deve encaixar e de que forma.
Faltas, falhas, carências sérias, traumas, desencontros, desajustes e inadequações entre necessidades e capacidade cuidadora adequada e sintónica desde o nascimento, determinam frequentemente problemas nas relações adultas. São aspetos do desenvolvimento psicológico precoce que não podem na verdade ser reparados via das relações amorosas (ainda que tendêncialmente procuremos muitas vezes fazê-lo). Um dos principais motivos deve-se ao facto de que a dimensão do trajeto pessoal ligada ao desenvolvimento psicológico precoce está para além (ou aquém) dos vinculos românticos, ou seja, pertence ao âmbito das relações parentais precoces - relações estruturalmente diferentes das relações amorosas, de expetativas, necessidades e permanências diferentes nas nossas vidas. Há certas carências que podem ser atenuadas no campo amoroso, porém quando são sérias e sobretudo aspetos ligados ao desenvolvimento da personalidade que perduram durante anos e aquando das várias relações, então a psicoterapia é de facto indispensável.
Estas faltas são dos maiores contributos para o medo da perda. Amamos interesseiramente porque precisamos de algo no outro que o torna ideal, idealizado ou idealizável. Amamos para sermos amados ou admirados, ou para estarmos associados àqueles ligados à admiração e ao prestígio. Amamos para sermos amados ou para não sermos abandonados. Por vezes amamos meramente enquanto reforço da nossa identidade (o outro tem características que nos conferem um sentido de identidade reforçada quando nos associamos a ele e ao seu estilo de vida). Procuramos encher-nos de coisas boas e sentimentos bons, tornando muitas vezes os outros nossos apêndices e vice-versa. Muitas vezes o orgulho ou a vergonha no companheiro atestam bem esta realidade. O outro serve (ainda que por vezes não exclusivamente, e apenas em parte) uma função de restaurar e repor algum aspeto deficitário da nossa autoestima, ou colmatar e proteger-nos contra angústias fortíssimas ou de sensações de ameaça interna por parte de algo muito mau ou destrutivo.
Por vezes assim que começamos a amar (ou pouco tempo depois) também começamos a sentir insegurança. Começamos a desvalorizar a outra pessoa, a atacar dentro de nós a perceção da importância que essa outra pessoa tem para nós, e mesmo a controla-la (a procurar sentir-nos seguros) ou a procurar "triunfar" sobre ela (por exemplo adotando comportamentos cuja mensagem é algo como um "como vês estou muito bem sem ti e não preciso de ti para nada"). São muitas vezes movimentos de negação interna da importância daquela pessoa para nós e daquilo de bom e importante que ela em potencial ou na realidade poderá ter para nos dar e de que precisamos. A cada "desencontro" ou frustração com o companheiro vamo-nos convencendo mais e mais de que estamos melhor sem aquela pessoa, de que talvez não seja a pessoa certa. Apontamos todos os defeitos numa folha de papel... Muitas vezes estas atitudes são o resultado de fortes mecanismos de defesa (omnipotência, negação da realidade psíquica, controlo, desvalorização primitiva, triunfo...) a operar por detrás de todos estas atitudes de relativizar, diminuir ou anular a importância da outra pessoa para nós. Defesas destinadas a negar a dor e o medo da perda, bem como a insuportabilidade da culpabilidade sobre danos infligidos. Estas defesas psíquicas tendem a ser tanto mais fortes e acentudadas quanto o medo da perda e a ameaça das angústias avassaladoras por detrás, ainda que a própria pessoa não tenha consciência destas angústias pois elas estão "tapadas" por estes poderosos (mas primitivos) mecanismos de defesa - sempre em eminência de colapso.
Neste terreno do amor narcísico é também onde surgem as idealizações mais patológicas. O amor implica uma certa idealização inicial. No amor narcísico a idealização é forte e não tolera nada bem a realidade do outro - alguém com uma identidade própria e diferente da nossa -, que muitas vezes não pode ser amado tal como é mas apenas ou sobretudo pela função que desempenha ou pelas expetativas e exigências que lhe são incumbidas. Tomemos o exemplo de mães e pais que desaprovam dos filhos quando estes não correspondem às suas expetativas, ou se desiludem constantemente com eles. Ou mesmo pais e mães que têm dificuldade em se interessar genuinamente nas descobertas dos seus filhos, nas dúvidas deles sobre o mundo que os rodeia e sobre eles mesmos, nas suas ideosincrassias. Que não conseguem ajuda-los a viver ligados e centrados neles mesmos, que por consequência fomentam um crescer centrado no exterior, nas expetativas e exigências dos outros (sendo os pais os primeiros e mais importantes representantes desses "outros" exteriores). Falamos de crianças que muitas vezes acabam por não poder ser elas mesmas - confiantes que são aceites, validadas e amadas tal como são, sem exigência ou expetativa para serem algo mais ou diferente. Crianças que por tal têm dificuldade em encontrar um ambiente de apoio para poderem encontrar e construir o seu próprio caminho no mundo, o seu "Eu verdadeiro".
A ligação com o Eu verdadeiro é a única via para tomar decisões de vida em consonância com a verdade interna que dá sentido à vida. Em contraste está o excesso de orientação de vida em função da expetativa exterior. Esta expetativa exterior ao longo do desenvolvimento torna-se interna, por internalizações inerente aos fenómenos do desenvolvimento e pelo hábito de foco nas expetativas exteriores ao longo da vida desde os anos formativos da personalidade. Também é frequente uma criança estar habituada desde muito cedo a focar-se nas preocupações da família, como se fosse adulta precocemente. Pode até receber comentários da família de como era um bebé bem comportado e parecia ser uma criança muito crescida logo desde muito cedo. É frequente que estas crianças enquanto bebés tenham vivido dificuldades ao nível da relação de cuidados primários com a mãe. Se nos primeiros meses de vida a mãe está sempre muito ansiosa ou se irrita amiúde quando cuida do bebé, ou é muito rígida no cuidar ao ponto de não conseguir estar verdadeiramente em sintonia com o bebé, atrasar-se muito ou antecipar-se aos protestos do bebé (ou outras situações idênticas), o bebé pode facilmente viver este estado da mãe enquanto ameaça à própria integridade de si mesmo (por motivos complexos ligados ao desenvolvimento da psique do bebé). Assim, o bebé pode desistir de protestar e anular (desintegrar) a parte de si que vive e experiencia a necessidade. É o bebé que passa a adaptar-se à mãe, a fazer como que psicoterapia à mãe ou a permitir que a mãe satisfaça as suas necessidades de cuidar através dele, ou que a faça sentir uma boa mãe, por exemplo. Há uma inversão de papeis logo desde os primeiros meses de vida que vai muitas vezes conduzir à formação de um Eu menos verdadeiro, que se orienta para os outros, para o desempenho de papéis ou para as expetativas e papeis exteriores (dos pais, sociais, e depois internalizados a partir destes) - a boa menina, a menina educada, a boa estudante, a amiga da mãe e do pai, a amiga do irmão, etc..
São por vezes jovens e adultos muito bem sucedidos mas que podem procrastinar e/ou deixam carreiras promissoras de lado, porque em última análise estes cursos de vida não estão em linha com quem verdadeiramente são ou com o que querem. Muitas vezes estes jovens e adultos não sabem o que querem, pois de tantas expetativas e exigências externas (por vezes para não desiludir os pais), estão tão habituados a monitorizar e seguir a expetativa que nem têm a experiência de se ligar a eles mesmos e descobrir quem são e o que querem. Outras vezes conseguem-no, porém o caminho logo logo fica tingido da tão familiar expetativa (interna sobretudo) e tal retira continuamente o prazer e a possibilidade de "ser" no fazer, desligando a pessoa do seu Eu e centrando-a novamente na expetativa (agora interna). Outras vezes a ligação com o Eu verdadeiro é um vazio insuportável com o qual não se consegue lidar ou o não se sabe o que com ele fazer. Vazio que denuncía a pequena criança que ainda está por descobrir quem é... Que lá no fundo procura alguém que lhe dê condições para ela própria se poder centrar sobre si mesma, construir o próprio caminho e descobrir a sua luz interna, aquela que surge do vazio e dá sentido e orientação à vida. É frequente que nem se tenha ideia do quanto se procura uma relação que permita fazer este caminho interno, pois a experiência da exigência (seja qual for ou quais tenham sido as formas que ela tenha vindo a assumir ao longo da vida) suplantou e substituiu a procura ou o desejo de uma relação com alguém que facilite e apoie a ligação ao Eu interior, o verdadeiro Eu. Procurar e encontrar alguém cuja atitude esteja longe de ser uma de impor, exigir, se desiludir, gerar expetativas, dar conselhos ou orientações, tudo interferências à possibilidade de deixar a criança (e o adulto) ligar-se a si mesma e se descobrir genuinamente - de se encontrar a ela mesma e descobrir o seu sentido e propósito no mundo.
De pais para filhos há sempre um amor narcísico à mistura ainda que possa predominar o amor oblativo, pois na prática os filhos são mesmo extensão dos pais, partilham o mesmo ADN! O que importa é preservar uma capacidade de diferenciação de desejos dos pais e da individualidade da criança, respeitar e dignificar a sua autonomia, identidade, escolhas e desejos, sem desilusões, culpas ou críticas.
Um amor narcísico ou imaturo é um amor que dificilmente tolera bem a altereidade, a diferença de individualidades (de feitios, de pensamentos diferentes, etc.). É um amor exigente porque na verdade procura uma adaptação ideal com a outra pessoa, ou melhor, que o "outro" se adapte idealmente ao "Eu", Por vezes a única modalidade de estar numa relação íntima é a adaptação resignada ao outro e às suas idiossincrasias, ou então a exigência de que o outro se adapte ou se modifique consoante a vontade/necessidade do "Eu". Por tal estamos no campo da indiferenciação psicológica - uma fase precoce do desenvolvimento do bebé que implica um estado mental de confusão Eu/Outro, entre o que existe dentro do "Eu" (desejos, expetativas, angústias, fantasias), e o que existe fora do "Eu", nomeadamente a individualidade externa, real, da outra pessoa. Estas dimensões estão geralmente confundidas nas problemas narcísicos de personalidade, por exemplo.
O amor narcísico é um amor que muitas vezes esgota o parceiro mediante a insatisfação e exigência que o caracteriza, frequentemente bem mascaradas por "argumentos" inteligentes destinados ao alívio da culpa intolerável de tanto se exigir e tão pouco em troca se dar. No final, o parceiro, drenado e zangado, acaba desvalorizado quando não é mais o provedor que se precisa. É então amiúde substituido por um outro provedor (de proteção, apoio, dinheiro, sonhos, viagens, estatuto, oportunidades, etc.), alguém que finalmente irá trazer a tão idealizada plenitude. Por sua vez, este movimento interno que tão rápidamente faz do outro admirável como indesejável, trata-se do mecanismo que irá reinstalar e repetir toda o ciclo de instabilidade e insatisfação, o ciclo de idealização/desvalorização primitivas (porque se tratam de processos internos que impedem ver o outro de forma completa, a partir de um vinculo emocional simultâneo com os lados admirados e os lados menos agradáveis da outra pessoa, sem que um ou outro destes lados eclipse o outro).
O amor maduro é um amor que não vêm necessáriamente a partir do "Eu" ou do interesse do "Eu" em se investir ou se estruturar a partir do outro. É um amor que é dado ou dirigido ao outro a partir daquilo que nos sobra (de afeto e de uma estruturação já préviamente completa do "Eu"). É um amor dirigido ao outro por quem este é e não por quem precisamos que ele seja para nós (por vezes momento a momento). Amar oblativamente sem depender ou exigir exagerada ou desadequadamente inaugura relações sãs, contudo tais relações são apenas possíveis se em troca recebermos o mesmo tipo de amor. Parece contraditório pois há uma expetativa de retorno, que poderíamos apelidar de narcísica, ainda que, mais uma vez, nós de facto vivemos de afetos e sem eles afundamos na depressão ou pior. O amor sem exigir - "amo-te e por tal quero que sejas feliz"- subentende entrega genuína e encontro com um outro que também esteja disposto a amar sem exigir, sem procurar modificar o companheiro. Quando recebemos amor sentimos gratidão e tal dá azo à generosidade, ou seja, à vontade de dar em troca. É uma espiral de amor que se gera, sem exigência, baseada num bom desenvolvimento do narcisismo de parte a parte e no crescente desejo de dar que advém da experiência do receber.